OLHOS SOBRE TELA...



Estava muito cansada, o dia, como sempre, foi cheio. De manhã, o café, o rádio, a hora certa, o cigarro, a chave entre as almofadas. Sair, pegar ônibus lotado, caras desanimadas para mais um dia de trabalho, emprego, salário de merda, hora do almoço, uma hora para mastigar, preencher mais formulários, digitar listas, seis horas da tarde, horário de verão, desligar os computadores, pegar novamente um ônibus, lotado, caras cansadas, trânsito lento, pernas e cabeça doendo, procurar a chave de casa nos bolsos, abrir a porta, fazer janta, servir-se, sentar-se e ligar a TV. Notícias, jornal das dezenove horas, seqüestro de empresário, criança cai no poço pluvial, continua os conflitos no Oriente Médio, reajuste aos aposentados, casamento do Príncipe de Bruxelas, sem-terras invadem departamento do INCRA, turnê da Madona, os comerciais. Refrigerantes, lojas de eletrodomésticos, propagandas do governo, lindas mulheres e carros zero quilômetro, cervejas geladinhas, combate às drogas, mais dez ambulâncias para um município de Alagoas, a vizinha discute com os vizinhos.Vou mudando de canais, deixo aquela luz colorida cansar as minhas vistas. Uma profusão de arco-íris eletrônico: o vestido vermelho da Vera Fischer, o fundo azul do jornal das oito, as gravatas amarelas de listras verdes dos deputados estaduais, o cabelo amarelo da Xuxa, os olhos azuis do Tom Cruise.Me levanto e vou pegar um livro na estante. Pego Pablo Neruda, abro na página noventa e oito e encontro um cigarro de baseado. Volto pra sala, está passando um anúncio de desodorante, acendo e prendo a respiração. Um novo aumento do dólar. Mudo novamente de canal e o Ratinho diz em bravatas e cuspindo na câmera de TV que não tem medo de nada.Nem eu teria ganhando a grana que ele ganha. Mas um momento parecia que o apresentador iria sair pela tela e me dar um murro na cara. Mudo bruscamente para outro canal. Novela mexicana, um outro homem de bigode, eles estão por todas as emissoras. Mudo novamente, Cultura Popular do Nordeste, Festa de Reis. Uma senhora com apenas dois dentes na boca, no rosto o mapa de sua longa vida, negra de olhos claros, lenço na cabeça, velha rezadeira. Com uma voz fraca diz "Nóis num temo riqueza, dessas de TV, mais temo alegria, alegria de vive, cantá, é assim desde de que eu nasci, que mundo é mundo. Tem gente que vérve diferenti, nóis respeita, porque mundo é muitu grande, e a gente é pequeno, mais somo grande coração." Ela olha para jornalista, e câmera olha para dona Maria. Que riquezas na TV são essas? Me pergunto. Mudo de canal, um grupo de Axé rebolando na cara de milhão de telespectadores, uma propulsão de cores, cenário abóbora, com detalhes lilás, vermelho, verde e amarelo, a roupa do apresentador, camisa florida, calça azul turquesa, relógio roléx, ouro de dar vertigem. Uma música de um só refrão, alguém afinou o pau de não sei quem.Realmente, tem muita grana na TV, bem diante dos seus olhos, vinte quatro horas do dia, enquanto pensamos em suicídio. Dona Maria tinha razão, volto para Cultura Popular do Nordeste. Acabou o programa, apenas restou os créditos finais. Quanta gente sobre os olhos de dona Maria. Anunciam a próxima atração, uma homenagem à Regina Duarte. É muito pra mim. É dose. Desligo a TV. Mas ao invés de total silêncio, fica um zumbido nos meus ouvidos. Ecos da Viúva Porcina, bombas da Palestina, locução esportiva, e a voz de Dona Maria: "Cantá, vive, é assim desde que nasci, desde que mundo é mundo".

(Célia Demézio)

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