OS SENTIDOS DA PAIXÃO




Medo da multidão e dos espaços vazios.
Medo dos encontros e desencontros.
Medo da janela aberta e da porta fechada.
Medo do escuro e da luz na tela da TV.
Medo dos ruídos e da harmonia dos ensaios de orquestras.
Medo da liquidação e dos preços altos.
Medo do frio e da água fervendo no fogão.
Medo das expectativas e da falta de esperança.
Medo da euforia e da derradeira melancolia.
Medo do esquecimento e das lembranças.
Medo do assalto e das câmeras de segurança.
Medo das alturas e do fundo do poço.
Medo da violência e dos slogans de solidariedade.
Medo do tédio e da quebra de rotina.
Medo do próximo e de mim.
Medo das forças ocultas e da objetividade.
Medo da parede pintada e das cinzas dentro do cinzeiro.
Medo das superstições e do bom senso.
Medo da morte e da ressurreição.
Medo da dor e da surpresa alegre no fim do dia.
Medo do mal e dos planos de saúde.
Medo da tecnologia e das cidades de interior.
Medo do mar e dos desertos de areia.
Medo de se atrasar e de furar a fila.
Medo do espelho e dos livros na estante.
Medo de ter medo.
Medo do sucesso.
Medo do fracasso.
Medo por todos os lados...
Agitando corações.

(Célia Demézio)
Poema inspirado no artigo "Sobre o Medo" de Marilena Chauí, incluído no livro "Os Sentidos das Paixões" (Companhia das Letras - 1990)

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