INSENSATEZ


“Vai meu coração ouve a razão Usa só sinceridade Quem semeia vento, diz a razão Colhe sempre tempestade” (Antonio Carlos Jobim / Vinicius de Moraes)

...com ele, como ele fosse uma criança, rolando os dois juntos na sala, ela dando uma bronca em tom de brincadeira. Estão se divertindo. Ele morde sua perna, mas não para machucar. Prende a perna, mas não arranca pedaço. Ele na verdade, não põe as mandíbulas, e sim os dentes inferiores, que são menores. É para brincar, mas não para machucar. Ela pega pelas suas orelhas, beija, e o chama de negão. Tanto cumplicidade ou mesmo amizade, que não se encontra mais. Ela quer cair fora de São Paulo, sacou desde o começo que aqui é outra história. As luzes, brilhos, vida digna, aqui, é para poucos. Hoje a vida tá uma merda. É ser escrava do tempo, esse que já está prestes a desaparecer, sem emprego, não se tem hora, não se tem compromisso, não se tem nada. Dia-a-dia que tudo está bem mais difícil... Acordo, lavo o rosto, bebo água, e vou fumar um cigarro. Para pensar as mesmas coisas de sempre. Continuamos em silêncio, sem nada a falar... Já falamos tudo. Parece que nossos assuntos, nossas idéias, nossos sonhos já foram contados mil vezes. Ou até mais. Quando brigamos, uma sai, ou então ficamos amuadas no mesmo canto, pensando, entrando em desespero. Eu crio uma raiva dentro de mim, juntando todos os defeitos que eu possa encontrar. Vejo uma egoísta do meu lado, espero que ela venha falar comigo, me pedir desculpas. Mas, já não rola desculpas. Sinto que já estamos enjoadas da mesma história. Não queremos mais saber mais delas. Como não querer saber mais de novelas, nem dos jornais, nem de sonhos. Um inferno em chamas ardendo sobre nós, e só sobrou a velha e bentida frieza. Quando sinto que fico com raiva demais, tenho vontade de esmurrar, quebrar, gritar, fazer escândalo. Ela também. Ela já chutou o som e eu já tentei quebrar o violão. Mas estamos sempre juntas. Alguns ou muitos acham casalzinho perfeito, em todos os sentidos que o ser humano hoje pode ter, que são tantos, com tantas cores que já nem dá mais para contar. Ela pára de brincar e vai lavar o quintal, vai preparar a comida, só ouço as panelas. Vou fazer um quintal. Ainda tem um tempo em silêncio, quando começamos a conversar. Ela conta o sonho dela, mas eu nunca consigo contar os meus, porque nunca sei o que rolou, que história contar. Faço esforços, como escrever, e tentar falar o mais longamente possível. Ela quer sair, ir ao teatro, ver cinema, fazer teatro, conhecer gente legal. Ainda não achou. Mas, estamos agüentando firme, em silêncio, ouvindo música. Depois de entregarmos o marmitex, que de projeto de um futuro próspero virou apenas mais uma dolorosa rotina, a gente sai, atrás das coisas, que a gente nem mais sabe o que são realmente. Estão diluídas pelo espaço, concretizadas na TV, que olhamos de boca aberta, com as aberrações do planeta, com os artistas famosos, com as imagens coloridas em preto e branco. Nossa alegria já se foi e só estamos segurando a barra, até um belo dia, não podermos mais. E esse será o fim.

(Célia Demézio)

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