ENTRE QUATRO PAREDES
"A nossa pena é simplesmente esta: arder em desejo, sem a esperança de sacia-lo". (Dante Alighieri)
"Eu tenho pressa, não minto, mas sinto que estou entre as quatro paredes da vida, e tenho sede meu amor, e guardo tudo, com muito cuidado, dentro de mim". (Sérgio Sampaio.)
Como posso sair daqui sem me machucar, olhar a luz do sol e gritar liberdade? É um lugar pequeno, tão sufocante, tão escuro. Ergo meus dedos e apalpo a madeira. Por vezes me firo com alguns pregos arrebitados. Ai! Grito, mas ninguém me ouve. Acho que grito baixo demais, de certo. Meus dez dedos estão sangrando, e os coloco na boca, chupo aquele doce acre vermelho. Sinto muita dor nas costas, pois o teto é baixo demais. Fico assim, encolhida, meus joelhos chegando ao queixo. Aliás, se abro a boca meus dentes arranham meus joelhos, e sei que também eles estão sangrando. Não consigo me virar, nem para esquerda, nem para direita, e nem para trás. Mas escuto muitas vozes no lado de fora. A vida caminha normalmente, como deus quer. Louças sendo lavadas, som de axé até o talo, outras vezes é o Marlyn Mason e consigo visualizar suas unhas negras arranhando minha cara. Televisão piscando ondas de luz coloridas pela brecha do único buraquinho de meu espaço, tão pequeno e tão desconfortável. Uma pequena brecha, minúscula, na altura dos meus olhos, e assisto uma família correndo pra cá e pra lá, atrás do não sei o quê, porque estou aqui no lado de dentro, e eles estão lá, no lado de fora. Isso vai o dia inteiro até o final da tarde, quando todos se reúnem em seu sofá velho, cheio de pulgas, todos paralisados pela magnitude das quatorze polegadas, que cabe o sucesso, brilho, guerras fenomenais, amores arrebatadores e performances de sacanagens do mundo inteiro. Era hora do jornal nacional e depois a esperança da heroína da novela. Parece que está emocionando a família, pois ouço comentários que lindo! Jesus do céu! Olho pelo buraquinho o sorriso do presidente da república. Meus olhos se enchem de lágrimas, mas não posso nesta minha posição desconfortável expressar merda nenhuma. No momento estou ocupada, e não posso fazer grandes coisas pelo meu país. Quem sabe nas próximas eleições? Assisto, somente. Queria só sair daqui e ver o pôr do sol, estou melancólica e muito pálida. Não que isto me incomode, mas é ruim para procurar emprego. Afinal de contas, a vida continua. Fecho os olhos e imagino estar caminhando numa sala de espera totalmente vazia, um ar condicionado gelando meus ossos, e eu começo a acelerar meus passos para me esquentar. Apenas ando de lá pra lá e pra cá e penso qual a próxima tarefa?, qual a próxima conquista?, qual a próxima derrota?, quando o cansaço derradeiro? Abro os olhos e nada de luz. Todos foram dormir. Tiveram o cuidado, tenho certeza de tirar a televisão da tomada, dar água para o cachorro e trancar as portas. Só ficou o sofá cheio de pulgas. Elas dormem aí mesmo. Todos estão sonhando, com leve sorriso no canto dos lábios e uma baba de fadiga milenar escorrendo no travesseiro. Vou tentar dormir também. Ninguém é de ferro. Quem sabe? Amanhã resolvem me encontrar, como sem querer, lembrarem que tinha muito pó, aqui por esta área. E dizerem saia daqui! Chispa! Me enxotem, me dêem um pé na bunda. Sairei corcunda, com uma hérnia de disco a me atormentar. Sangrando, os olhos fundos e vermelhos com os flashes das luzes do dia, sempre tempestuoso, rumo à rua, seus trajetos, seus atalhos e suas armadilhas. Let’s go, baby!
Célia Demézio
"Eu tenho pressa, não minto, mas sinto que estou entre as quatro paredes da vida, e tenho sede meu amor, e guardo tudo, com muito cuidado, dentro de mim". (Sérgio Sampaio.)
Como posso sair daqui sem me machucar, olhar a luz do sol e gritar liberdade? É um lugar pequeno, tão sufocante, tão escuro. Ergo meus dedos e apalpo a madeira. Por vezes me firo com alguns pregos arrebitados. Ai! Grito, mas ninguém me ouve. Acho que grito baixo demais, de certo. Meus dez dedos estão sangrando, e os coloco na boca, chupo aquele doce acre vermelho. Sinto muita dor nas costas, pois o teto é baixo demais. Fico assim, encolhida, meus joelhos chegando ao queixo. Aliás, se abro a boca meus dentes arranham meus joelhos, e sei que também eles estão sangrando. Não consigo me virar, nem para esquerda, nem para direita, e nem para trás. Mas escuto muitas vozes no lado de fora. A vida caminha normalmente, como deus quer. Louças sendo lavadas, som de axé até o talo, outras vezes é o Marlyn Mason e consigo visualizar suas unhas negras arranhando minha cara. Televisão piscando ondas de luz coloridas pela brecha do único buraquinho de meu espaço, tão pequeno e tão desconfortável. Uma pequena brecha, minúscula, na altura dos meus olhos, e assisto uma família correndo pra cá e pra lá, atrás do não sei o quê, porque estou aqui no lado de dentro, e eles estão lá, no lado de fora. Isso vai o dia inteiro até o final da tarde, quando todos se reúnem em seu sofá velho, cheio de pulgas, todos paralisados pela magnitude das quatorze polegadas, que cabe o sucesso, brilho, guerras fenomenais, amores arrebatadores e performances de sacanagens do mundo inteiro. Era hora do jornal nacional e depois a esperança da heroína da novela. Parece que está emocionando a família, pois ouço comentários que lindo! Jesus do céu! Olho pelo buraquinho o sorriso do presidente da república. Meus olhos se enchem de lágrimas, mas não posso nesta minha posição desconfortável expressar merda nenhuma. No momento estou ocupada, e não posso fazer grandes coisas pelo meu país. Quem sabe nas próximas eleições? Assisto, somente. Queria só sair daqui e ver o pôr do sol, estou melancólica e muito pálida. Não que isto me incomode, mas é ruim para procurar emprego. Afinal de contas, a vida continua. Fecho os olhos e imagino estar caminhando numa sala de espera totalmente vazia, um ar condicionado gelando meus ossos, e eu começo a acelerar meus passos para me esquentar. Apenas ando de lá pra lá e pra cá e penso qual a próxima tarefa?, qual a próxima conquista?, qual a próxima derrota?, quando o cansaço derradeiro? Abro os olhos e nada de luz. Todos foram dormir. Tiveram o cuidado, tenho certeza de tirar a televisão da tomada, dar água para o cachorro e trancar as portas. Só ficou o sofá cheio de pulgas. Elas dormem aí mesmo. Todos estão sonhando, com leve sorriso no canto dos lábios e uma baba de fadiga milenar escorrendo no travesseiro. Vou tentar dormir também. Ninguém é de ferro. Quem sabe? Amanhã resolvem me encontrar, como sem querer, lembrarem que tinha muito pó, aqui por esta área. E dizerem saia daqui! Chispa! Me enxotem, me dêem um pé na bunda. Sairei corcunda, com uma hérnia de disco a me atormentar. Sangrando, os olhos fundos e vermelhos com os flashes das luzes do dia, sempre tempestuoso, rumo à rua, seus trajetos, seus atalhos e suas armadilhas. Let’s go, baby!
Célia Demézio
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